quarta-feira, 25 de dezembro de 2013



QUERIA FAMA. MEU SONHO ERA SER UM DOS BEATLES 


             PARLA*! 

             O cantor Renato Russo, 35 anos, lança um disco solo de canções italianas, Equilíbrio Distante. Essa foi apenas a desculpa que a gente arrumou para falar com ele sobre quase tudo, inclusive sexo, drogas e rock'n'roll. Se você é fã da Legião Urbana (é o próprio RR quem usa o artigo feminino: a Legião, não o Legião), aguarde: a banda está pronta para gravar mais um disco. *Fala!", em italiano. Esse é um dos verbos que RR mais gosta de conjugar. Ele adora conversar.
             
             Que shows você assistia quando tinha a idade de quem assiste aos shows da Legião? 
             Na minha época não havia nada. O primeiro show de rock que vi foi da Rita Lee, quando ela foi tocar em Brasília. Tinha uns 15 anos. Saía com meus amigos, ia ao cinema, lia bastante, ouvia música. Mas não sobrava muito tempo para fazer essas coisas, eu estudava bastante.
             
             Você era CDF? 
             Fui bom aluno até a sétima série.
             
             E desandou por quê? 
             Não sei!!! [risos]. Acho que fui para um colégio mais difícil, quando minha família mudou para do Rio de Janeiro para Brasília. Tive dificuldade para me adaptar. Lembro do primeiro dia de aula, todo mundo de uniforme e eu lá com o meu macacão.
             
             Para ser diferente? 
             Eu era meio freak [extravagante]. Por isso não tinha muitos amigos no colégio. Era mais amigo das meninas. Principalmente das meninas estudiosas, daquelas que sentam na primeira fileira. E dos nerds também. Nunca fui nerd, mais me relacionava bem com eles.
             
             Qual era sua turma? 
             Sempre fui mais estranho do que qualquer outra coisa. Era muito... não sei se intelectualizado é a palavra certa, mas eu lia muito. Teve um dia na aula de literatura que o professor pediu para escrever numa folha de papel todos os livros que já havíamos lido. Eu disse: [com voz esganiçada] "Impossível. Em uma folha só não cabe". [risos]
             
             E você já sabia o que queria fazer da vida?
             Alguma coisa ligada à palavra, ser jornalista, escritor. Ou então trabalhar com algo ligado à expressão artística. E, de preferência, uma coisa que me desse muito dinheiro... fama e sucesso. Ah, meu sonho era ser um dos Beatles!
             
             Por que tanta modéstia?
             Ah, talvez para me vingar do mundo.
             
             O que a gente fez de mal para você?
             Bem, o mundo nunca me maltratou. Mas eu achava que as pessoas sempre podiam muito mais do que faziam. Todas muito servis, aceitando tudo. Pensava: agora chegou minha vez. Esperei minha infância inteira para ter 18 anos. Acreditava que podia tentar mudar alguma coisa para melhor.
             
             Seus pais eram muito exigentes?
             Eram sim. Eles diziam: "Quer comprar sua guitarra? Vai trabalhar, economize e compre". Isso me ajudou muito. Cheguei a dar aula na Cultura Inglesa. Fui um bom professor, tanto que mandavam os piores alunos para mim.
             
             Como Sidney Poitier, no filme Ao Mestre, com Carinho?
             Não fazia milagres, mas um aluno com média 3 passava para 6. Hoje em dia tem essa coisa toda de aprender rock em aula de inglês, falar de Mel Gibson e tudo. Na minha época não tinha nada disso.
             
             Ficava no "the book is on the table"? 
             E olhe lá. Aí comecei a dar músicas do B-52, do Ramones. Distribuía instrumentos musicais para os alunos. E claro que tinha um prato, que eu dava para o mais bagunceiro da turma. Acho que se for fazer outra coisa  na vida, vai ser dar aula - mas não para adolescentes, que são muito complicados.
             
             Você era complicado? 
             Adorava essa coisa de família quando era criança. Na adolescência comecei a me incomodar um pouco. Mas quando era moleque, brincava de pique, soltava pipa, andava de rolimã, ia nadar na praia.
             
             Foi difícil ser obrigado a sossegar pela epifisiólise, a doença que você teve nos ossos? 
             Muito. Nesse período resolvi realmente me interessar por música. Ficava deitado ouvindo os discos, sofrendo, tadinho. Tive que fazer várias operações, andei de cadeira de rodas, de muletas. Mas não estava nem aí. Era adolescente e tinha mais problemas em ter espinhas na cara do que em andar de muletas. Pelo menos ficava claro que eu era diferente. Sempre quis ser diferente.
             
             Por isso virou punk? 
             Era para espantar o tédio. Em Brasília não tinha nada para fazer. Até hoje não tem muito. E olha que eu trabalhava e estudava. Mas no fim de semana não tinha o que fazer.
             
             O que era mais divertido em ser punk? 
             Juntava sempre uma galera, tinha a música, as festas, um monte de bandas. O Aborto Elétrico [banda pré-Legião Urbana] é desse tempo. Tudo muito divertido, muito inocente. É você contra o mundo; você ganha uma identidade própria.
             
             E você ainda precisava disso? 
             Claro, eu era muito inseguro. Porque sempre soube que era gay. Sempre. O mundo me dizia que eu era doente, pervertido. Queria ser completamente diferente e, ao mesmo tempo, aceito pelas pessoas. Mas isso faz tanto tempo. Acho que fui adolescente até os 26 anos.
             
             Estilo Geração X [termo criado pelo escritor Douglas Coupland], os marmanjos  
             que não desgrudam da mamãe? 
             Ah, acho esse povo Geração X muito mal-resolvido. Vai se virar, vai  trabalhar. Não estou falando das pessoas pobres, que têm dificuldades. Geração X é classe média.
             
             É preguiça mesmo? 
             A pessoa é jovem, tem saúde, disposição, o mundo inteiro pela frente, vai ficar em casa assistindo Vale a Pena Ver de Novo? [risos] Nem todas são assim. Tem uns 10% que fazem as coisas. Os outros ficam por aí. O que eu posso fazer?
             
             Você exerce influência sobre elas.
             Estou lá no palco cantando minhas músicas. Não quero exercer influência nenhuma. Se a Legião tem uma mensagem, é "seja sua própria pessoa". E não acreditem no que eu falo.
             
             Isso é meio Fernando Henrique Cardoso, não? 
             Mas é verdade. A pessoa pode até gostar e se identificar, só não pode uma coisa virar verdade porque eu falei. Tenho uma responsabilidade, mas não sou o salvador da pátria. Uma vez uns garotos vieram aqui no prédio falar comigo. Não quis descer, tava de mau humor.
             
             O que faz você ficar mal-humorado? 
             Às vezes acordo de mau humor, por nada. E quando estou com fome ou  preocupado, pronto. Agora estou controlando. As drogas me atrapalhavam muito.
             
             Como você começou a se drogar? 
             Eu sou dependente químico e não sabia. O alcoólatra não é sem-vergonha. Existe uma enzima que o corpo do alcoólatra processa num ritmo duas a três vezes mais lento do que o de uma pessoa normal. Então ele acha que não é alcoólatra porque todo mundo bebe e fica bêbado, e ele não.
             
             Até ficar dependente. 
             Com o tempo, o organismo começa a precisar daquilo. E começam a aparecer problemas de relacionamento. Virei aquele chato com quem as pessoas não podiam falar, porque não sabiam qual seria minha reação. E vai ficando mais pesado, cheguei a usar heroína.
             
             Quando você percebeu que havia perdido o controle? 
             Na hora que começaram a sair reportagens dizendo que o Renato estava bêbado, o Renato deu ataque, o Renato apanhou de seguranças no Canecão...
             
             No show do Emerson, Lake & Palmer? 
             É. E o mais chato nem foram essas notícias. Foi quando começaram a mentir. Tudo era eu. Nem estava nos lugares e diziam que eu tinha quebrado tudo. Estava me sentindo sozinho.
             
             Como você se sente hoje?
             Não posso beber nunca, sou dependente químico. É como diabético, que nunca pode comer açúcar. Tive uma recaída séria há uns dois meses. Durou quatro dias e foi um inferno, mas me recuperei.
             
             Você não se incomoda em contar tudo isso? 
             Não, para mim é muito bom. Me dá força. É diferente. Não vou ter vergonha de ter cabelo preto, de ser canhoto. Sou uma pessoa pública, não acho que devo mentir para as pessoas.
             
             E por que só assumiu que era gay em 90?
             Não falava para não ter problema. Na minha adolescência, sempre me perguntavam se eu era filho único. [risos] Tem menino que é uma flor, eu não. Sou bem macho. Não dá nem para fingir. Acho que é por causa dos filmes de gladiador que eu via quando era pequeno. [risos]
             
             Você gravou um disco solo em inglês, o Stonewall, e agora um em italiano. E  
             em espanhol, que dá dinheiro? 
             Eu não me identifico com a língua espanhola. É belíssima, mas não me identifico. Se for para cantar em espanhol, canto em português. Acho muito parecido. Italiano é completamente diferente.
             
             O disco é brega de propósito? 
             Ficou menos do que era para ser, tem umas coisas bem bregas. Tentei trabalhar numa linguagem que não domino, música romântica para consumo popular. Ela fala grandes verdades. Tem aquele dia que você está lá, de coração partido, e toca aquela música do Gilliard. Aí você presta atenção na letra e, putz, é exatamente o que está sentindo.
             
             O que faz você cantar hoje, depois de doze anos de carreira e 4 milhões de cópias vendidas? 
             Uma boa melodia e uma letra interessante. Gosto muito de cantar. Às vezes fico a tarde inteira ouvindo meus discos favoritos e cantando junto.
             
             Dinheiro não faz cantar? 
             Dinheiro me faz gravar discos, é diferente.
             
             Deveria levar você a fazer mais shows, não?
             Mas não gosto de fazer show, me canso muito. o esgotamento físico até que passa, o problema são as responsabilidades, a gritaria. Como nós vendemos  bastante, tudo bem. E não preciso de mais nada. Se gostasse de comprar roupa, precisaria de mais dinheiro para aquele terno Armani de 1500 dólares...
             
             Só para ir ao Prêmio Sharp. 
             É. [risos] Usar uma vez só. Com meu estilo de vida, vivo bem. Gosto de comprar livros e CDs, viajar de vez em quando. Tenho um carro, uma Caravan 86, que fica com meus parentes.
             
             Você dirige? 
             Não. O carro é para eles. É impossível dirigir aqui no Rio de Janeiro. Dirigir não é só pilotar, tem que seguir as regras do trânsito. Há pessoas na minha vida que se foram por acidente de carro.
             
             A mãe do seu filho, Giuliano? 
             Exato. Não quero falar mais nada sobre isso.
             
             Ele continua com seus pais? 
             Tá sim, não tenho como educar o Giuliano agora. De jeito nenhum. Nossa relação é ótima, ele está com 6 anos e é esperto. Quero que venha ficar comigo um dia. Ele fica com meus pais, em Brasília.
 
             E quando você morava em Brasília com seus pais - lá é tudo tão longe - não dava vontade de ganhar um carro? 
             Não, queria uma guitarra!
             
         
             Fonte: Revista Capricho dez/95 
             Por Fernando Luna